segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Meu mundo era a Praia da Enseada

Esse texto vem do José Carlos de Góis, originalmente postado no blog Coisas de Caiçara, do meu amigo José Ronaldo. 
Mais uma viagem até o tempo ancestral. Apertem os cintos...

Quando nasci, na década de 50, Ubatuba era paradisíaca. Meu mundo era a Praia da Enseada, o quintal da mamãe cheirando manacá, arruda, alecrim, guiné, as flores das laranjeiras nevando o chão. O jundu, na praia, com sua vegetação nativa, as flores roxas do cipó de corvina, o rabo de bugio, os frutos cheirosos dos abricoeiros, as amêndoas dos chapéus-de-sol, os coquinhos jarobá... Quanta saudade!

     Papai subia o caminho do porto assobiando, os olhos refletindo todo o azul do mar, a fieira de peixe, o samburá de timbopeva cheio de sururu, aquele pé de moleque caiçara, cheirando a gengibre, que regalava eu e minha irmã Conceição.

    Mamãe na velha máquina de costura, cantando, completamente desafinada, músicas que ainda hoje estão na minha memória, como se estivesse ali, sentado no canto da sala, ouvindo sua voz forte de mulher caiçara: “Eu vi sobre o mar navegando, um barco floreando em flor/ Albertino em tu pensando, nada mais do que o amor”... E outra:“Vamos sambar minha gente, pelo sertão, pelo mar/Queremos ter na lembrança a dança do carnavá” (segundo ela, a música do carnaval era de autoria do padrinho Benedito Henrique, na época de sua mocidade, quando faziam blocos de carnaval para brincar na praia).

      O costão da Enseada, o meu velho e querido amigo Silvério Bastos de Ornelas, carinhosamente chamado de Sabá, na pesca da garoupa. Dele tenho gratas recordações. Quando ia pescar, já me chamava, alto e bom som: “Vamos Zé Calos?”  E era assim mesmo, sem a letra erre.  Eu não cabia em mim de contente. Pegava minha varinha mixuruca, com anzol de pegar amborê, e lá ia com o Sabá para a costeira do lado oeste da Enseada. No costão, a pedra onde ele ficava era a mesma. Só que não deixava eu ficar rente a ele. Mandava eu ficar em outra pedra afastado uns vinte metros donde ele estava, “pra mode não intrapalhá, não ispantá as garopa”. E lá ficava eu pegando meus amborés, às vezes um guaiá, enquanto o Sabá pegava uma ou duas garoupas. A isca que sobrava (sardinha ou bonito) ele jogava no mar, e dizia: “Zé Calos, isso é pra ingodá, quando a gente vortá aqui, despois de amanhã,  elas já vão istá isperando e nóis pega mais umas duas.” E era tão somente o que ele pegava. Era pura sabedoria. Pescava apenas o suficiente para o nosso sustento (ele sempre me dava postas das garoupas). Não tinha a ganância de hoje de pegar duas, três, dez, vinte..., na usura de vender e ganhar com a exploração desenfreada.

      Cabe aqui contar uma passagem que demonstra a sabedoria do Sabá: estava ele a pescar garoupa, eu, os amborés, quando percebi que sua linha havia enroscado. Ele com toda a paciência que lhe era peculiar firmou a vara numa reentrância das pedras do costão, de modo que a linha de pesca ficou retesada. Pegou algumas pedras pequenas (do tamanho de um punho fechado), pegou no samburá pedaços de linha, e foi amarrando nas pedras, deixando as pontas soltas; daí passava as pontas da linha amarrada na pedra ao redor da linha retesada, dava um nó e soltava: a pedra deslizava pela linha retesada, e “tchimbum”, afundava na água. Ele pegava a vara, experimentava, dando pequenos puxões; tornava a repetir a operação. Na terceira pedra, veio uma bela garoupa, de, pelo menos, três quilos. Fiquei admirado! Pedi pro Sabá me explicar como a linha tinha desenroscado e ele tinha pegado a garoupa. Me explicou com seu lindo sorriso: a garoupa quando é fisgada pelo anzol tenta desesperadamente entrar na toca; quando consegue ela se arrepia toda e as galhas ficam presas na pedra, e a linha fica enroscada; quando ele fez as pedras deslizarem pela linha retesada,  as mesmas bateram no focinho da garoupa. Primeira, segunda, na terceira ela já estava incomodada e saiu da toca. Daí foi só puxar! Ah, Sabá, eu tinha, então meus doze anos...

Da saudade da Enseada antiga, escrevi este poema (que musiquei à minha moda), em 2.013:

PRAIA DA ENSEADA

Praia da Enseada, que gosto me dá
Cantar para o mundo que eu nasci lá,
Filho de Fabiano e de Pitiá
Cresci embalado nos braços do mar,
Ouvindo as cantigas dos sabiás,
Curtindo a beleza dos caraguatás,
Sentindo o perfume dos manacás,
Em meio à pureza dos laranjais,
Infância-caiçara que não volta mais!

     Mudei da Praia da Enseada em 1.987. Vou lá sempre visitar minhas irmãs Zefa, Conce, Doca, e rever meus amigos. Gosto de ficar olhando o mar e vejo o garoto feliz, cabelos desenfreados ao vento, dorso nu, ouvindo o assobio que vem do passado, e sinto a leve carícia de papai nos meus ombros...

Ubatuba, 08 de janeiro de 2.015.

Em tempo: e que tal decifrar o caiçarês ?

1- UMA NIMBUIA NA GAMBÔA FAZENDO BULHA.

2- MININO, QUIDELE O TESTO QUI TAVA DE JÁ HOJE AQUI, JUNTO DA SERENGA?
O menino do Fabiano, futuro doutor, catando sapinhauá (Arquivo JCG)

domingo, 25 de janeiro de 2015

Teletransporte Caiçara, rumo ao tempo ancestral.

Esse vem do Roberto Ferrero.
O texto é quase uma prova de que é o território como um livro cujas palavras não são letras, mas imagens, cheiros, gostos e gestos que só podem ser compreendidos plenamente através de um guia ou Mestre.
Processo idêntico ocorreu comigo e idêntica também é minha admiração pela cultura Caiçara e seus saberes.
Conhecimento ancestral que permite descobrirmos em nós mesmos o que é ser humano integralmente, em toda sua potencialidade. 


Curioso, às vezes uma imagem nos transporta para outro lugar. Perdido entre memórias e causos que muitas vezes se aproximam do realismo fantástico, pondero. Poderiam essas coisas todas terem acontecido? Não importa, embarquem comigo, se aconcheguem no bojo dessa história que eu vou firme no remo. E se segura que vamos se alagá. Cuia na mão! 


Achei essa foto do meu amigo Zezeca tirada num dia de mariscada na Praia das Conchas. Carregávamos o tachão, uma caixinha de fósforos e um punhado de limão. Era basicamente o que precisávamos. Outros apetrechos eram um balaio, tênis velho e uma faca de manteiga cortada na metade. Tirávamos só os maiores, escolhidos a dedo. Era esse o costume do caiçara, e era assim que aprendíamos. Eu gostava de fazer a limpeza dos mariscos que iam sendo descarregados nos buracos naturalmente escavados nas lajes. Quantas horas eu fiquei curvado sobre aquela vida toda, separando pequenos santolas, cracas, saguaritás, guaiás, nereis, lebres do mar, anêmonas, pindás e piranjitas. Às vezes penso se foi tudo isso que me levou, anos mais tarde, a escolher o curso de Ciências Biológicas. Seja como for, decerto tenho: o Zezeca foi o meu primeiro professor. Com ele aprendi um punhado de coisas que levo comigo até hoje. Assobiar para guaiá, abacaxi pra guaiamum, picaré na lua escura, buraquinho da pegoava, cruzar picos para achar pesqueiros e decifrar os ventos. O que começa quente e vem pelo espelho d’água escalando as canelas, anuncia o Noroeste. Ele sempre me dizia, que o Noroeste não deixa a Mãe morrer de sede. Bordão Caiçara que poucos se lembram. 
Como são poucos os que se lembram que não se usa enxada para tirar marisco.
Quando não era na Praia das Conchas era na Laje do Tapiá que buscávamos o mexilhão. A movimentação começava cedo. Eu e meu irmão éramos arrancados da cama pela minha tia Tuca e meu primo Cleiton. Meus pais já estavam preparando o barco, pequenos lanches e agua. Logo a chatinha já estava deixando nossa casa na Praia da Enseada rumo ao boqueirão. Passávamos pelo rancho do Parú onde o pessoal também estava se arrumando pra pesca, saudávamo-nos. Todas pequenas baias até o boqueirão tinham nomes e não me recordo mais deles. Frequentemente as pedras também o tinham assim como as lajes que adentravam no mar. Como é detalhado o mapa do território caiçara! Passávamos o cerco flutuante. Eu gostava de ir na proa, gostava de alertar sobre tocos na agua que poderiam comprometer a viagem. Da proa eu avistava também uma enorme canoa a motor vinda da Ilha Anchieta. Não dá para esquecer o póc póc póc do motor. Ouvia-se de longe. Na canoa, todos sentados em fila indiana, vinham uns 4 ou 5. De primeira vista eu conseguia distinguir, com sua cabeleira branca amarelada, o Sr. Joel da Praia do Sul!!! Quem eram os outros? O Betum? O povo da Praia do Sul...Quando atravessávamos o boqueirão, na Ponta do Espia, começavam a aparecer as toninhas. Quantas delas correndo atrás de cardumes de sardinhas e manjubas. Era uma festa de se ver, meu pai desacelerava o motor e ficávamos a admirar o trabalho coordenado de caça delas. Tímidas, logo iam embora. Diferente dos golfinhos, que nos acompanhavam algumas vezes por um determinado tempo. Já na Laje do Tapiá, tirávamos mariscos no mergulho. Eu ficava aflito com o tempo que meu pai conseguia segurar a respiração. Quase sempre voltava com um punhado na mão. Meu primo fazia linhadas para eu pescar enquanto catavam o marisco. A isca era sempre saguaritá. Não tinha muito sucesso na pescaria, acho que a movimentação toda afastava os peixes. Lembro-me de Garoupinhas, Badejos e Socorocas. Todos miudinhos, voltavam sempre para o mar. Ah, tinha um vermelho também. Olho grande e um espinho nas guelras que sempre me furava. E o Budião, profissional de roubar isca. O Budião dava na mesma época que a tainha. Na mesma época que o João Parú colocava rede de camarão na frente da minha casa. Meados de Junho-Julho. E eram dois os sons desse tempo. 
O primeiro era um TOC TOC TOC rápido e seco. Era o João macetando os siris na borda da canoa para tira-los da rede de camarão. O segundo era um TCHUF abafado. Seguido de outro após alguns segundos, e outro e outro. Era a pedrada na agua no cerco à Tróia, que era o jeito de capturar Tainhas e Paratis. 
Graves sons do mundo Caiçara. 
De pesca de Tainha eu nunca participei. Sempre observei a movimentação das canoas fechando cerco, rodeando cardume, procurando... mas nunca participei. Me restava perguntar para o Zezeca. Como faziam para achar o cardume? Ele me explicava que sempre tinha alguém, o Espia, que subia nos morros e pedras altas para avistar o cardume. O Grosso da Agua denunciava a sua presença. O Espia mandava sinal para os pescadores. Como eu não podia participar da pesca, quis participar da Espia. 
Ele me levou num final de tarde. O caminho era o mesmo que levava à Praia de Fora, mas a certa altura pegamos uma saída lateral da trilha principal. Chegamos a um ponto alto, onde podíamos observar quase toda a Baia do Flamengo e a Ilha do Mar Virado. Sentamos ali naquele pequeno descampado e esperamos, eu sem saber ao certo o que esperar. Ele me apontou a Ilha do Mar virado e me contou do Boitatá, uma luz esverdeada de forma circular que subia da Ilha e rondava até quase o continente, assustando toda a gente. Era isso que eu estava esperando??? Meu coração batia em todas minhas artérias e veias enquanto meu olho não desgrudava da Ilha. Mas não era. Esperávamos um cardume de Tainhas. A luz do dia já estava acabando e começávamos a desistir de ver um cardume quando, da direção da Praia do Flamenguinho, pareceu surgir uma modificação na superfície da agua. Eram elas! Um enorme cardume de tainhas fazendo algazarra na superfície do mar. Fiquei ali maravilhado com o espetáculo mas infelizmente a tarde foi caindo e o Zezeca achou por bem voltarmos. E assim foi. Perdemos um pouco o tempo e a escuridão tomou conta do caminho. Foi difícil, avançamos vagarosamente por essa saída lateral da trilha da Praia de Fora. Quando alcançamos a trilha propriamente dita, foi mais tranquilo e seguimos bem. Pouco antes de um descampado onde hoje tem um pé de Ingá, tinha uma abertura na mata e conseguíamos ver, não tão do alto, mas ainda assim do alto, um pedaço da Baia do Flamengo. Paramos ali para tentar adivinhar onde eram nossas casas (naquela época não tinha a iluminação pública na Praia da Enseada). Pedi para ficarmos um pouco ali, que eu queria ver se não aparecia a tal da luz misteriosa na Ilha do Mar Virado. E ficamos. Olhando atentamente toda aquela imensidão escura, qual não foi a minha surpresa quando comecei a ver clarões esverdeados-azulados no mar. Seria ela? Era isso? Não era!? Uma mancha luminosa que se modificava e se transportava pelo mar. As vezes sumia para reaparecer novamente nas imediações de onde havia sumido. Uma hora a mancha dividiu-se em duas, que andaram por um tempo para lados opostos mas logo se juntaram novamente. Tinha horas que brilhava tanto!!! O Zezeca me falou que só podia ser o cardume de Tainha agitando a agua e fazendo brilhar a Noctiluca, um pequeno ser vivo (Dinoflagelado) que emite luz quando é estimulado. Que espetáculo foi aquele cardume brilhante de Tainha! Ficamos observado aquela dança de luzes no mar completamente calados até ela desaparecer do nosso campo de visão. Até hoje eu penso nessa noite. Naquelas luzes. Uma espécie de auróra boreal no Mar. O Zezeca morreu poucos anos depois disso. Também a pesca farta da Tainha, a Lage do Tapiá, o Sr. Joel foi expulso da Praia do Sul, as canoas foram encostando, o camarão mirrando...
E muito da cultura Caiçara foi se perdendo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A MENOR CANOA CAIÇARA NAVEGÁVEL DE UBATUBA

Encomendada pelo Sr. Roberto Prochaska, para ser o berço do meu filho Rafael, essa linda Canoazinha Caiçara feita pelo Mestre Renato Bueno provou-se navegável.
Bruna e Luana Németh Bonilla, minhas sobrinhas, em apenas 10 minutos aprenderam como remar e dominaram completamente a embarcação.
Chegaram a embarcar em dupla na valente VôVó que aguentou firme as remadas, desta vez em companhia da minha outra sobrinha Lola Casalderrey. Veja só na foto abaixo, com quase 47 quilos embarcados e ainda navegando tranquila.
Impressionante também foi, além da estabilidade, a docilidade de governo da canoazinha, que obedecia prontamente ao comando das remadoras, no vídeo abaixo, a Bruna.

Luana, um pouco mais atrevida, foi até o "fundão", mas sempre sob nosso olhar cuidadoso.
Tudo isso comprova que a Canoa Caiçara é uma embarcação cujo desenho, além de ser belíssimo, mostra-se perfeitamente navegável seja qual for sua escala de tamanho. Breve atualizarei com as medidas oficias da Canoazinha VôVó.

Fotos e vídeos por Tati Németh Bonilla.