Cento e quarenta e cinco (145) pessoas adultas viviam em 7 localidades registradas, com exceção do sul da Ilha, onde proprietário algum foi citado nos contratos.
Muitos sobrenomes familiares pude identificar: Gil, Jardim, Oliveira, Graça, de Jesus, de Goes, Peres, Conceição, Cabral, Barbosa, Marcellino, Lopes, de Souza, dos Santos, entre outros.
Descobri que o marido de Idalina Graça, provavelmente foi expulso do Mato Dentro e confirmei a origem da família Gil, do Mestre Antenor dos Santos como sendo mesmo no Parcelzinho conforme o relato dele. No entanto seu provável avô Daniel Gil foi expulso da Prainha, a mais povoada com 30 edificações, dez vezes mais do que no Parcelzinho, que abrigava apenas uma viúva, um viúvo e uma solteira, cada qual em sua casa de sapé, cujos vestígios o Antenor já me mostrou.
Aproveito para reproduzir um pequeno trecho do livro Terra Tamoia de Idalina Graça onde podemos mesmo "sentir" a Praia da Enseada dos anos 1930.
CAPITULO I
A viagem
Foi ao cair de uma tarde de janeiro de 1930, que deixei para sempre a terra de Brás Cubas pela terra dos tamoios: UBATUBA. Havia uma razão para isso: — meu marido, natural da Ilha Anchieta, sentia profundas saudades de seu torrão e mal se dava na trepidante Santos, porque a sua índole não se casava com o vertiginoso movimento do grande porto paulista. Eu também, filha de Ilhabela, esse paradisíaco rincão do litoral norte, ansiava poder sentir novamente ao meu derredor a misteriosa beleza rústica, e com sabor primitivo das praias, das nossas praias, até o advento do turismo que se assenhoreou de tudo, trazendo o progresso característico da época que atualmente vivemos, mas retirando aquela paz que era própria dos caiçaras simples e sem problemas. Casada apenas há dois anos, vivia somente para o meu marido, que era o pequeno mundo onde me agitava. Carregando os nossos poucos haveres para o convés da lancha "Ubatuba-Santos", línico elo que ligava as duas cidades periodicamente, enfrentei a nova fase de minha existência, desafiando, naquela inesquecível viagem, o mar revolto, bramindo a sua raiva como se desejasse impedir minha chegada à terra que se tornaria meu novo lar. Albino, meu marido, fortemente gripado, mal saía do lugar que escolhera. Eu, em contrapartida, em todos os portos da orla litorânea onde a lancha aproava, descia, vasculhava os arredores com meu olhar, fixando tipos e coisas em minha memória. Pouco se me dava o oceano bravio. Meu coração exultava pelas novidades, pelo encantamento da viagem. Dois dias passaram até chegarmos, bordejando a ilha natal de meu marido, adentrando o boqueirão e encostando na Praia da Enseada, onde transcorreriam os meus primeiros tempos de "ubatubense". Nessa longínqua tarde em que ali desembarcamos, o sol tendia a se esconder entre os montes. Sua luminosidade já levemente rósea, tingia a superfície das ondas de tonalidades belíssimas, cheias de nuanças, enchendo meus olhos e minha alma. Chamou-me à realidade das cousas, a voz de meu marido, que, impaciente pela cansativa viagem, não compreendia o meu entusiasmo pela praia a que acabávamos de aportar: — Como é, Idalina? Você desembarca ou não? Suspirei ao pensar quão errado fora o destino em ter me feito nascer mulher. Como invejei os homens nesse dia! Estava longe de adivinhar que, desde aquele instante até o momento presente, em que escrevo estas reminiscências do passado, teria que assumir uma personalidade masculina. Naquela noite memorável, fizemos camaradagem com milhões de pernilongos, indesejáveis visitantes que só sabem agradar mordendo. Conformei-me, comparando-os aos homens, destinados, na terra, a ferir os seus semelhantes. Porém,, rio dia seguinte tudo esqueci ante o grandioso espetáculo do nascer do sol. Inundava a serra e o mar, e era a sua luz, tão grande a manifestação de Deus na Natureza, que chorei! Logo depois, Albino veio ao meu encontro e ficou consternado ao me ver chorando: — Você está arrependida? — Não, querido! Estou chorando de alegria... — Impossível — disse êle, enquanto me levantava da areia molhada. — Você gosta daqui de verdade? — Sim, Albino! Adoro a vida simples, sem artifícios, onde cada ser humano recebe aquilo que Deus determinou! Aqui o homem é senhor e rei em seu lar! Tudo isto eu lhe disse, apontando o majestoso cenário que ambos contemplávamos naquele instante: — Veja, Albino, os pescadores como riem e cantam ao estenderem suas redes! Ajoelhando-nos na areia úmida, oramos, pedindo ao Pai Todo Poderoso forças suficientes para ganharmos o nosso pão de cada dia, agradecendo ao mesmo tempo, a dádiva de luz e beleza, com a qual fomos presenteados pela Divina Misericórdia naquela manhã de 3 de janeiro de 1930.
CAPITULO II
Início da luta
Depois de instalados, fiz, com meticuloso cuidado, uma investigação pelos arredores de minha casinha. Como era simpática! Pequenina e branca, de janelas azuis, espiava a medo para o mar! Algumas árvores frutíferas completavam o encanto do meu novo lar. Dias depois. Albino abriu uma pequena venda. Ali se reuniam, quando não iam à pesca à noite, os caiçaras, bebendo um trago ou jogando truco; discutiam o tema de todos os dias: — o tempo, o peixe, o vento e, algumas vezes, política, o que me divertia muito. Era a Praia da Enseada, naquele tempo, isolada da cidade, mas, plena de beleza poética. Possuía umas vinte habitações ao todo, de construção pobre, mas, em compensação, ricas de luz e harmonia. Eram os seus habitantes gente simples de costumes sadios e precisos em suas ações. Em breve me fiz amiga de todos êles e, para facilitar a vida, troquei meus trajes femininos por outros, masculinos. Agora sim! — pensei — ia trabalhar, e, com o tempo, também possuiria minhas redes! Foi essa a época mais feliz da minha vida. Da manhã à noite eu lidava com peixes, aprendendo na convivência do homem litorâneo, usufruindo a vida e bem alicerçada na Fé.
Entre os moradores da pitoresca praia, havia um que se sobressaía aos demais pela agudeza de seu espírito, nunca faltando onde a ação exigisse sua presença. Esse pescador é, hoje em dia, homem de negócio na próspera Ubatuba. Já fazia seis meses que, felizes, morávamos no Retiro Azul, pois assim eu batizara o nosso lar. — Como adoro este nosso ranchinho! — dizia eu. — Meu e não seu... — respondia Albino com ar trocista. Você não pára em casa.. . Era uma grande verdade. Apenas despontava a madrugada e os primeiros raios de luz beijavam o mar, já ali me encontrava, extasiada. Despertava de meu encantamento, chamada à realidade da vida pela voz de Albino, reclamando o café da manhã. Êle não se conformava com tão "maus costumes" da minha parte. Ralhava: — Até parece que você casou com o mar e não comigo! — Mas, meu bem — retrucava eu, desapontada em ver os meus devaneios detestados por Albino — eu não tenho culpa de ser assim! Adoro o esplendor deste oceano e a sua imensidão! É um espetáculo que sempre se renova e age poderosamente em mim... Eram apenas rusgas conjugais, logo desfeitas. Hoje vivo da saudade delas e daqueles tempos já tão distantes.
No mês de julho a nossa praia animou-se. Em todos os lares notava-se desusado movimento: caiavam-se as paredes, lavava-se o chão e, o próprio pescador guardava a canoa no rústico galpão, antegozando o que lhe era muito caro: A "Folia do Divino". Estava na Ribeira, cantando na casa do João Glorioso, pescador conhecido, homem bom, de honestidade comprovada em todo o município de Ubatuba. Em nossa casa não havia espaço para receber a ''folia", pois a sala principal tinha sido transformada no negócio de Albino. No dia em que o Divino chegou à Praia da Enseada, fechamos a venda e ambos fomos assistir a festa, na casa de um parente de meu marido, o Gil. Desde a manhã que este não cansava de carregar comidas e bebidas mandadas vir expressamente da cidade, aos cuidados de João Vitório. Sinto-me emocionada ao recordar a expressão feliz que animava aqueles semblantes honestos e cheios de vida, na expectativa ansiosa de receber a Jesus em seus lares (quão santa e pura é a fé do homem do mar!). Lembro-me bem que eu mesma me senti comovida, quando a Bandeira do Divino apontou na estrada, na frente de um cortejo, carregada por uma bonita praiana. Avançava, as fitas esvoaçando ao sopro da viração, lentamente, pois muita gente detinha a jovem no caminho, fazendo-a baixar as fitas para serem beijadas. Muitas delas eram cortadas e enroladas para serem guardadas como amuletos. Esses costumes, quase totalmente desaparecidos, deixam agora somente recordações daqueles tempos, daquela gente simples e boa, que vivia longe dos homens e perto de Deus. Foi para mim, neófita nesses ritos, um espetáculo maravilhoso! Ver naquela gente metida em seus trajes domingueiros, com os olhos fisgados no grupo solene dos violeiros. .. Então, o mais moço deles, um guapo praiano, adiantou-se aos companheiros, inclinou a cabeça sobre a viola e com voz ampla e sonora modulou estes versos singelos:
"O Divino Espírito Santo nesta casa vai entrar;
Êle vos pede pousada e também o que almoçar"
Depois deste improviso foi que o simpático violeiro, acompanhado por todos, entrou nos pagos do Gil. A dona da casa, tendo recebido a Bandeira, carinhosamente levou-a para o interior, cobrindo-a com alva e rendada toalha. Em seguida, veio sentar-se a meu lado e perguntou-me: — É bonito, dona Idalina? — Não, Dita. O que estou vendo é mais do que bonito. É simplesmente maravilhoso! — Olhe, querida! Olhe para a expressão fisionômica destes homens! continuei — Parecem crianças recebendo um brinquedo ardentemente desejado! Por minha vez, senti como um nó na garganta, sem saber definir o porquê desse estado d'alma. Foi então que a voz jovem e bem timbrada do segundo violeiro, cantou os versos seguintes:
"Descansando em vossa casa,
Linda flor de mãe querida,
Pergunto a senhora dona
Onde está nossa comida."
E, depois bem almoçados:
"Espiai pro Espírito Santo,
Lindo colar no pescoço.
Deus ajude com saúde,
Quem nos deu tão bom almoço.
O Divino deu um "viva",
Em toda parte se ouviu.
Peço a Deus que abençoe,
Quem nossa mesa serviu."
Já à noitinha, depois de muita cantoria, vinha o fecho:
"Mais um "viva" se ouviu
Quando se escondia o sol.
Peço a Deus que me dê
Uma cama e um lençol."
Fazia-se tarde e Albino foi despedir-se dos donos da casa, enquanto eu, depois de uma longa volta em torno da casa, e também de levar alguns empurrões, consegui me aproximar do "folião", nome esse que, a meu ver não combina com as suas atribuições, tão a sério êle leva o desempenho do papel de violeiro-cantador. Quis sondar-lhe a alma para descobrir de onde vinha o encanto que emanava da sua poesia. O simpático praiano, ao saber do meu interesse, repetiu-me os versos que garatujei em uma folha de papel, com a promessa, da minha parte, de devolvé-lo no dia seguinte, a fim de que êle o guardasse. — Afinal, Idalina, para que você quer estes versos ? — perguntou Albino; e vendo que eu não respondia, continuou sorrindo: — Será que você pretende cantar folia? Não meu bem! Se Deus quiser, não há de ser preciso você fazer tanta força assim... Mesmo porque — juntou trocista — a escutar o seu canto, prefiro mil vezes o coaxar da rã do brejo... Não respondi. Cantarolando baixinho os versos que escutamos do moço violeiro, sentia ecoar no meu coração a singeleza das rimas, tão de acordo com o ambiente rústico e simples.
Enfim, chegamos à nossa casinha. Albino reassumiu seu posto no balcão, e eu, bem a contragosto, guardei os meus sonhos em uma caixinha para momentos mais apropriados. Ouvi, no decorrer da noite, o som das violas, acompanhando o canto do "folião".
O dia seguinte amanheceu lindo, com o sol amigo. Estávamos ainda no café da manhã, quando Dita entrou em casa correndo. Como era bonita a caiçarinha! Cabelos castanhos e crespos, olhos esverdeados tendendo para o azul. Eu sempre dizia, brincando com ela: — Menina, do quem você é namorada. Do mar ou do céu? E ela dizia: — Dos dois, dona Idalina. E foi a graciosa moça que, com algazarra juvenil, nem deixou o meu marido abrir o armazém, dizendo: — Não dará tempo, "seu" Albino. O folião vai cantar a despedida! Adiantando-nos em louca corrida, partimos as duas para a praia ensolarada, apesar dos veementes protestos de Albino, que vinha mais devagar. Antes de chegarmos esperei-o, e, já agora compenetrada do papel de senhora casada, parei, tomando fôlego. Em seguida abrimos caminho através dos nossos amigos. Assim posso chamá-los, pois na realidade, sem exceção, eram todos bons e carinhosos para nós. A "Folia" já estava de saída. Sorridente, o jovem cantor adiantou-se e gentilmente pediu licença a meu marido para oferecer-me os primeiros versos da despedida. Concedida a licença, o mesmo levantou a voz e cantou:
"Dizem que mulher de fora
Jamais gosta do lugar
Mas esta dona tem cara
De quem aqui vai ficar.
Mercê veja se acostuma
E desde já vá criando,
Pato, galinha e ganso,
Que para o ano voltamos.
A esmola que vós destes.
Lá na Glória chegou:
Os anjinhos receberam.
Nossa Senhora guardou.
O Divino foi prá Glória,
Foi buscar a boa sorte
Pra casa onde almoçou."
Vi-os partirem com saudade. Foram momentos felizes esses que vivi, nos primeiros dias da minha chegada à Enseada. Mais de trinta anos são passados. Porém, em minha alma, ainda mora a recordação viva da festa do Divino, que eu vira pela primeira vez. É o passado ainda perfeito, trinta e poucos anos depois, que fala nas páginas deste livro. É também uma homenagem aos meus amigos de então, que habitavam a Praia da Enseada. Uma vez por outra, tangida pela saudade, eu procurava recordar os versos, tão simples em seus dizeres e tão belos na voz de um filho daquelas praias.
Folia Do Divino na Enseada, foto: Cristina Prochaska - 2015. |
Escritura de compra e venda da Ilha Anchieta, foto Peter Németh. |