Hoje, com a gentileza do caiçara Eduardo Souza e do Luiz Moura (O guaruçá), faço questão de apresentar este belo texto sobre a canoa caiçara. Aos dois, os meus sinceros agradecimentos e um grande abraço. Em tempo: não consegui anexar a imagem do Ubatuba Víbora. Ainda bem que o Júlio Mendes tem muitas imagens de canoas (e todas são belas!).
Talvez pela simplicidade, talvez por ser primitiva - neste mundo ansioso de novidades tecnológicas, confortáveis e fugazes -, a canoa é para mim algo belo, uma obra de arte. Fui levado a refletir sobre o tema ao deitar os olhos na foto da canoa que encima as páginas do Ubatuba Víbora, do amigo Sidney Borges. A canoa em terra, na areia da praia, solitária, à espera do dono e, diante de si, o mar... Belíssima foto!
         
Tenho 
um depoimento do Baeco, fazedor de canoas. É um  
artista. Eis trechos do que ele diz: “A construção de canoa começa 
pela    escolha da melhor madeira, mas a famosa mesmo 
é o Cedro. Depois vem a  Timbuíba, o 
Ingá, o Bracuí... o Loro, o Guapuruvu e o Angelim. O Angelim  tem três tipos: Angelim Amargoso, Angelim 
Gisara e o Angelim Pedra. Estas   três 
são boas pra canoa. Esta é a madeira que a gente garante.” (...)   ”Madeira a gente escolhe a lua, sim; agora, 
não precisa ser uma minguante  de 
inverno; qualquer minguante é boa.” (...) ”A gente sabe a árvore que  vai dar boa canoa no olho, primeiro o olho... 
Você bate o olho, vai, erra   centímetros, e o tamanho é a boca da canoa” 
(...) ”O comprimento a gente  se baseia 
na boca, na largura da boca, tá? Normalmente é sete vezes um,  sete por uma. Sete vezes a largura da boca é 
o comprimento da canoa.”   (...) ”Se ela, 
por exemplo, tem sessenta centímetros de boca, sete vezes  seis quarenta e dois, então a canoa 
normalmente vai ter quatro metros e  vinte centímetros.” (...) ”Pra medir no mato 
a gente tem uma mania: põe  uma vara em 
direção à árvore antes do corte e aí sai com exatidão. A gente  põe a vara lá na direção que vai ser o meio 
da canoa, e olha de longe e  calcula. 
Porque tem a posição da boca, porque olhando na árvore você vê o  lado melhor para a boca. Você olha tem um 
lado que é ‘selado’ e tem o  outro que é 
mais ‘jeitoso’ para fazer a boca da canoa. A gente mede  naquele lado. Com a vara faz uma cruz. Um 
olha de longe e vê o que está  sobrando. 
Você vê com exatidão, porque a madeira é roliça. O outro, de   longe, olha, aí você empurra pra lá, empurra 
pra cá, até saber o centro  direitinho. 
Aí tira a grossura da casca, tira um pinguinho menos, e você tira o tamanho 
certo; aí sai exato, centímetro certo...”
O homem vê na árvore a canoa e, então, a transforma. O que era uma árvore, um Angelim no meio da mata, transforma-se, vira utensílio, instrumento, humaniza-se, torna-se mundo. A intimidade do homem com a canoa, que se torna extensão de seu corpo, de sua alma, que participa de sua história. Quando na solidão do mar, em terra, a mulher, os filhos, os amigos esperam que ela não falhe em trazer de volta o pescador que a navega, e a canoa, então, encarna a esperança. É ela que faz com que o mar, enquanto dificuldade, obstáculo, desafio, se torne possibilidade e colabore também na formação do modo-de-ser caiçara desse homem.
Na vida da maioria dos ubatubanos não há pelo menos uma história em que não esteja presente uma canoa. Nos meus tempos de infância, ela servia como veículo (além do uso na pesca) de transporte corriqueiro para os caiçaras do norte e do sul do município. A canoa é também fazedora de reminiscência. Tenho na memória duas canoas: a Mirim (acho que já escrevi sobre ela aqui no O Guaruçá), que meu pai me deu de presente bem antes de eu aprender a andar. Uma pequena canoa de guapuruvu. Arisca que só ela. Boa parte de minha infância e adolescência foi a bordo dessa canoinha, subindo e descendo o rio Grande da cidade. A outra, uma velha canoa, era a que meu pai, juntamente com alguns amigos dele, nos finais de semana, me levava para pescar com rede de arrasto na baía da cidade, na Praia do Cruzeiro. Ia na proa, deitando a rede ao mar aos poucos, sincronizado à velocidade da canoa. Meu velho, na popa, remava. Lançada a rede, em semicírculo, retornávamos à praia onde já nos esperavam para começar a puxada da rede com cordas feitas de imbé. Quando terminava a pescaria, subíamos a canoa, rolando-a sobre tocos de madeira até o rancho onde ela permaneceria esperando o próximo final de semana. Era pesca de lazer para meu pai e seus amigos. Para mim, sair de canoa com meu pai, momentos mágicos, inesquecíveis. Lembrar de uma canoa é também lembrar-me do meu velho, meu primeiro e maior amigo. Que Deus o tenha.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto é caiçara, 60, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.