sexta-feira, 22 de março de 2013

O MAIOR TROFÉU DA PRAIA DA ENSEADA

Eu nunca tive orgulho de matar os peixes que matei, muitas vezes enquanto ramava pra casa com a proa da canoa cheia de paratis ou tainhas, ficava até um pouco triste, mas nesta época eu SOBREVIVIA exclusivamente dos peixes e mariscos que eu matava. Também nunca gostei de matar os maiores peixes, sempre pensei que os maiores já haviam sido selecionados pela natureza, eram os mais fortes, mais adaptados e as matrizes que tinham as ovas maiores, podendo gerar milhões de filhotes também geneticamente melhorados. Além disso os peixes maiores sempre foram mais difíceis de vender, por exemplo, um robalão de 15 quilos eu venderia por R$ 300,00 enquanto que um de 5 quilos valia R$ 100,00.
Muitas vezes cheguei a encostar o arpão no peixe para espantá-lo e tentar ensinar o bicho a fugir ao invés dele achar que ficando parado não poderia ser visto.
Também muitas vezes quando encontrei um cardume escolhí sempre o peixe entre 3 e 5 quilos, deixando em paz as gordas fêmeas ovadas de 10 ou 15 quilos.
Meu avô, o Dr. Mário, me ensinou a ser justo na pescaria. Aprendí o "fair play" com uns 8 anos numa pescaria de peixe porco no boqueirão da Ilha Anchieta. Era um cardume tão grande de porquinho passando por baixo da chatinha que meu primo pediu o puçá para capturar vários de uma vez. Meu avô então ensinou, "com puçá não meu filho, não é justo com o peixe e não tem graça nenhuma".
Alíás covardia é como muito pescador caiçara mais antigo define a caça submarina "esportiva"que vai buscar a matriz que está tranquila lá na toca dela.
Quem já mergulhou sabe, o peixe é curioso e acredita ser o "senhor das pedras", vindo dar uma espiada em quem ousa ir incomodá-lo em sua residência.
[Mergulhador acaricia um garoupão neste vídeo. Clique aqui.]
Nesse momento ele é muito facilmente abatido apenas para servir como um troféu, pois quem o matou "esportivamente" não faz da pesca seu principal meio de vida, como define a legislação.
Falando em legislação, por que será que o pescador profissional, aquele que depende do peixe para sobreviver material e culturalmente, tem que provar que não tem outro vínculo empregatício, tem que registrar canoa, rede, barco, papagaio anualmente em todos os ministérios e repartições imagináveis além de estar sujeito a uma fiscalização rude e constante; enquanto o amador ou "esportivo" pode entrar em qualquer loja de pesca e sair com um arpão novinho sem registro algum?

De 2004 para cá, a Praia da Enseada começou a ser um polo de maricultura, com a implantação de fazendas marinhas na produção de mexilhões.
Aliás a história da Enseada com a produção de mariscos remonta ao pioneirismo da atividade no Brasil. Tudo começou em 1968 com a primeira experiência do gênero no nosso litoral. Enrique Casalderrey, que conheceu a atividade durante sua infância na Galícia - Espanha, lançou bóias e coletores artificiais na região da Enseada e Ilha Anchieta que empencaram de mariscos. Um ano mais tarde, junto com seu cunhado Roberto Prochaska, eles construíram a primeira balsa de mitilicultura de que se tem registro em águas brasileiras, que foi fundeada em junho de 1970 próximo a praia do sul da Ilha Anchieta.

Mais tarde nos anos 80, o engenheiro Bernardino Garnier, chegou a produzir 60 toneladas/ano de mexilhões na Praia da Enseada. Hoje existe um Parque Aquícola no local e 7 maricultores locais, trabalhando em cooperação, cultivam os mariscos em suas fazendas sustentáveis. A sustentabilidade da atividade está principalmente no fato que as sementes necessárias ao cultivo não são mais "raspadas" da costeira como ocorria nos anos 80, e sim coletadas no próprio cultivo através de estruturas flutuantes especiais, ou então retiradas dos rodos do cerco flutuante local, manejado pelos próprios pescadores/maricultores.
Outro sub-produto da atividade da maricultura, que lhe confere o status de atividade sustentável é a enorme capacidade que o cultivo tem de gerar vida marinha. Nas estruturas flutuantes ou nas poitas submersas uma imensa quantidade de organismos marinhos encontram abrigo, alimento e condições ideais de reprodução.
São tartarugas marinhas, polvos, lagostas, robalos, pirajicas, meros, chernes, paratis, tainhas, porquinhos, uma infinidade de crustáceos e algas. Ou seja, nossos cultivos tornaram-se um imenso complexo gerador, atrator e exportador de vida marinha para toda a região, contribuindo para a recuperação ambiental de toda a área.
Voltando para a legislação, desde a instituição do GERCO (link), ou Zoneamento Ecológico-Econômico do Litoral Norte de SP (Decreto Estadual 49.215, de 7 de Dezembro de 2004), toda nossa costeira leste desde o cantinho da Praia da Enseada, passando pelo nosso Parque Aquícola, até mais ou menos o Saco Grande, ou seja, aproximadamente uns 800 metros de costeira, foram classificados como Z2-ME. Nesta Zona 2 Marinha Especial é permitida aquicultura de baixo impacto, pesca artesanal exceto arrasto, extrativismo de subsistência, ecoturismo e posteriormente em 2008, pelo Decreto Estadual n° 53.525, foi "estranhamente" alterada somente a Z2-ME do GERCO, incluindo a permissão de pesca amadora com caniço ou molinete, linha de mão vara simples e carretilha. Entretanto continua totalmente proibida a caça submarina "esportiva", embora mergulhadores desavisados ou de má fé continuem a praticá-la (como mostra o vídeo abaixo feito exatamente na área proibida da Praia da Enseada).
 
Troféu?
Destes 800 metros de costeira sobrevivem cerca de 15 famílias caiçaras locais por diversas gerações. É deste sítio pesqueiro que a comunidade local retira seu sustento e renova seu saber ancestral e sua cultura Caiçara. Para estes pescadores tradicionais, peixe não é troféu, peixe é vida, cultura e a garantia de que seus valores possam ser transmitidos para as futuras gerações.    
Sustento/fair play
Entenda-se que não sou contra a caça submarina ou a pesca amadora, sou contra a atitude de alguns mergulhadores "esportivos" que não respeitam nossos cultivos marinhos nem as áreas reservadas exclusivamente aos pescadores tradicionais, que dependem dos recursos marinhos que ali existem para sobreviver.  O mar é muito grande e existe espaço para todos.


Fotos: arquivos das famílias Casalderrey, Prochaska e Németh.

Um comentário:

  1. Excelente post.
    O texto, então, muito bom. Foi escrito com sentimento e muita consciência social e ecológica.

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