quinta-feira, 12 de março de 2015

Entrevista com Antonio Carlos Diegues, caiçara e Nobel da Paz.

Esse trecho foi retirado de uma entrevista concedida pelo Prof. Dr. Antonio Carlos Diegues à repórter Carlota Cafieiro do jornal A Tribuna, publicado em 10 de novembro de 2013.
foto: Paulo Nogara.
A definição de caiçara cabe à qualquer pessoa nascida no litoral do Brasil?
O termo caiçara não se aplica à comunidades de pescadores e lavradores a não ser aqueles nascidos em em um território que compreende do litoral paranaense até o sul do Rio de Janeiro. Existem até cidades que se chamam Caiçara, como uma no Rio Grande do Norte, mas não tem nada a ver. É outra cultura. São também caiçaras as comunidades que passam por Santos e vão até Mongaguá, Ubatuba, Paraty, praticamente às portas do Rio de Janeiro. Elas têm o mesmo modo de vida.

O que mais define um caiçara além dessa geografia?
O modo de vida baseado na associação da pequena agricultura de mandioca e arroz para subsistência e a pesca artesanal. O que faz o caiçara são essas atividades, além do seu modo de falar, porque ele tem uma espécie de dialeto que vem do português antigo, do tempo da colonização. Essas áreas ficaram muito tempo isoladas da capital, sobretudo no Vale do Ribeira e em Ubatuba, pois não existiam estradas. O transporte era feito do norte de Paraty para Santos pelas famosas canoas de voga (remo). Eram canoas enormes, de dez metros de comprimento e boca de um metro e meio de largura, que não é mais construída, na qual os pescadores traziam tonéis de aguardente, peixe seco, farinha para negociar em Santos e voltavam para Iguape e Cananéia, pois até o começo do século 20, não tinha estrada nenhuma.

No que a cultura caiçara contribui para a identidade brasileira?
Assim como os sertanejos, seringueiros na Amazônia e caboclos, eles são os formadores da nossa cultura e da nossa história, além dos índios, negros e imigrantes. Quer dizer, a cultura brasileira deve muito a essa população que ocupou o litoral, os rios e o interior. Mas isso nunca foi totalmente reconhecido no Brasil.

Por que isso acontece?
Existiu e ainda existe muito preconceito, como se os caiçaras fossem ignorantes. Um absurdo, porque quem convive com eles sabe o duro que dão. Eles seguem o relógio da natureza, das marés, dos ventos. Não vão sair quando sabem que não tem peixe. Têm um conhecimento fantástico do mundo natural. E isso vem sendo recuperado pelas universidades. Hoje, existem muitos mestrandos e doutorandos que estudam essa questão do conhecimento tradicional, coisa que as cidades ignoram.

Quais fatores prejudicam a cultura caiçara?
Basta notar o que aconteceu em Ubatuba com a especulação imobiliária. Quando os paulistanos chegaram ao litoral encontraram os caiçaras na praia, e a forma para justificarem moralmente a tomada de terras deles era dizer que não a mereciam porque não trabalhavam, pois eram preguiçosos. Isso não aconteceu só no Brasil, mas no mundo inteiro. A forma de você pegar a terra dos outros é dizer que eles não são humanos. Em segundo lugar, os caiçaras foram alijados pelas chamadas áreas protegidas, como a da Juréia. Hoje, praticamente 80% das áreas em que os caiçaras viviam, incluindo o litoral norte, são protegidas. Os pescadores não podem cortar mais nenhuma madeira para fazer canoa, não podem fazer sua roça, e encontram limitações para fazer seu artesanato. Não precisava ser assim.

Você percebe resistência por parte dos pescadores?
Começa-se a recuperar essa tradição caiçara, até porque eles começaram a reagir e passar para algum protagonismo. Eles começaram a reagir contra a especulação imobiliária de alto nível, pois se sentiram enganados durante a transferência da posse de terras, muito por não saberem ler.

Existe também uma reação por parte da cultura?
Sim, começou a renascer parte da cultura que estava esquecida, como o fandango, a rabeca e a culinária caiçaras. Ajudadas por institutos de pesquisa e ONGs, essas culturas começaram a se reequilibrar. Vejo isso em Iguape e Cananéia, onde existem as Redes de Cultura, e na Juréia.

Como os caiçaras deveriam ser vistos pela sociedade?
Como vigilantes da natureza, pois eles conhecem a mata como ninguém. Têm uma capacidade incrível de reconhecer seu território e quem passa por ele, tanto que um caiçara com casa na praia sabe quem passou por lá pelas pegadas na areia. Se fossem adequadamente incorporados nesse processo de conservação da natureza, até a fiscalização seria mais fácil, pois eles ajudariam denunciando se tem algum palmiteiro ou um madeireiro agindo na região. mas eles são sistematicamente expulsos e isso é uma besteira política e ambiental, pois é justamente na área caiçara que existe a maior parte da Mata Atlântica conservada, diferentemente do interior, onde as florestas foram destruídas pela cultura da cana de açúcar e dos laranjais. tanto que as pessoas que destruíram a natureza são ricas, e a população caiçara, responsável pela floresta estar de pé, é pobre.

Quais são as consequências da expulsão dos pescadores artesanais de seus locais de origem?
Os conflitos serão insolúveis. É preciso resolver o problema das populações nativas. Veja o caso da Juréia, onde até hoje existe briga. Os pescadores foram transferidos para a periferia e se transformaram em subempregados.

A população caiçara compreende quantas pessoas atualmente?
Eu mesmo tentei fazer uma estimativa desde o litoral paranaense até às portas da cidade do Rio de Janeiro. Hoje não passam de 80 mil pessoas, um número muito baixo em relação ao que eram antes. É um terço do que tinha no começo do século 20. Eles foram muito massacrados.

Fotocópia do Nobel original. Foto: Peter Santos Németh
Breve biografia do Prof. Diegues: aos 70 anos (2013), é um dos ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, concedido coletivamente em 1981 ao Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, em Genebra na Suíça. Nessa época viajou pelo mundo, passando do Vietnã arrasado logo após a guerra até a China de Mao Tsé Tung. Nascido em Santos e criado em Iguape, é filho de uma professora primária com um imigrante da Galícia dono de uma padaria em Santos. Em 1966 entrou para a USP mas como era vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE), foi perseguido pela polícia e teve que refugiar-se no Maranhão. Mais tarde fez mestrado em desenvolvimento rural na Holanda e passou também pela França, onde iniciou o doutorado sobre pescadores artesanais em 1974. Hoje é professor de pós-graduação na USP e diretor científico do NUPAUB. Escreveu mais de 30 livros, alguns deles embora esgotados ainda podem ser encontrados através do e-mail: bambuluz@yahoo.com.br
ASSISTA À UMA FALA DO PROF. DIEGUES


12 comentários:

  1. Adorei o resgate da entrevista .Importante para aqueles que ainda não "conhecem" o Caiçara . Faço Mestrado em Hospitalidade e meu objeto de estudo é a Culinária Caiçara , fico muito feliz com estas postagens , obrigada !

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    1. Obrigado em comentar. Com certeza necessário, pois só se ouve falar em azul marinho. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=724281784253671&set=pb.100000155685886.-2207520000.1456860191.&type=3&theater

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    2. Amo o povo Caiçara!
      Sou formada em Turismo e meu Trabalho de Conclusão de Curso é sobre uma Comunidade Caiçara que pertence a Reserva Ecológica da Juatinga em Paraty. Pretendo dar continuidade nesse tema no meu Mestrado. Adoro o Professor Diegues.

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  2. O professor Carlos Diegues é um amigo e sobretudo um ser humano da melhor qualidade. Tem sua vida dedicada aos pequenos e humildes e se encanta não só com os caiçaras, mas também com os remanescentes de quilombos e caboclos do Vale do Ribeira, onde coloca sua voz e sua autoridade intelectual a serviço de nossas comunidades, nossa gente. Parabéns querido professor Diegues.

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  3. A melhor entrevista que li sobre o tema. Mesmo no litoral onde ainda vivem caiçaras ou descendentes os ataques à essa cultura maravilhosa deixaram muitas sequelas,que devem ser debeladas para que haja um efetivo resgate e desenvolvimento das qualidades a ser preservadas e conhecidas pelas gerações futuras.

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    1. Obrigado pelo comentário. Talvez esse outro post lhe interesse: http://canoadepau.blogspot.com.br/2014/06/quanto-vale-o-patrimonio-halieutico.html

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  4. Finalmente uma voz para os Caiçaras. Arrela....bede..bede..siminino. Obrigado.

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  5. Peter, me emociono com certas postagens suas pois sei perfeitamente o que você sente em relação ao mar, à natureza e à cultura caiçara.

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  6. Viva, viva a cultura caiçara, nossa identidade e memória. Nossa primeira mixigenacao. Salve a ancestralidade. Caiçara é índio branco.

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  7. É bem difícil de esternar o quanto fico feliz por ver esta matéria sobre minha Etnia,meu povo que tanto preconceito sofre até hoje..( caiçara é um índio branco) concordo com meu amigo..

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  8. Fantástica essa entrevista. Os detalhes mencionados são de uma realidade impressionante. Vou citar só um que impressionou pela veracidade. O fato de os caiçaras conhecerem quem passou por ali, pelas pegadas na areia. Isso é real. Digo mais, na Praia onde morei, havia um senhor que tinha "um caso", pois bem ele quando ia, andava de costas, quando voltava., andava normal. Assim as pegadas só "vinham". Um abraço.

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