Interessante resgatar este documento que apresenta "subsídios interessantes a respeito da evolução da produção pesqueira e das técnicas de captura, das condições de comercialização, das relações de trabalho e participação social".
Embora seja um documento editado pela SUDELPA, a maior parte dos dados apresentados foram coletados pelo Prof. Antonio Carlos Sant'Ana Diegues entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970 em viagens de campo feitas em Ubatuba.
O que torna este estudo especial é que ele compõe um quadro da atividade pesqueira de Ubatuba em uma época de sensíveis mudanças socioeconômicas e culturais que impactaram fortemente a região. A abordagem do Prof. Diegues revela um panorama completo da percepção dos pescadores sobre questões como o impacto da abertura da BR e outros aspectos relevantes tais como: Histórico da atividade pesqueira em Ubatuba, Produção por Espécie em Ubatuba, Valor da Produção, Distribuição dos Pescadores por Praia, Tecnologia e Produção, Participação Social, Dificuldade e Aspirações, Quadro de produtividade do cerco flutuante, etc.
Tudo isso permite um verdadeiro mergulho na atividade pesqueira de Ubatuba do início dos anos 1970 fornecendo valiosos dados que nos permite avaliar as mudanças e as não mudanças que ocorrem nos dias atuais, meio século depois.
Abaixo um trecho do TEXTO COMPLETO de "A PESCA EM UBATUBA, estudo sócio econômico", Antonio Carlos Sant'Ana Diegues, SUDELPA, 1974.
"Por outro lado, o contato maior do embarcado com os centros urbanos maiores como Santos e Rio de Janeiro faz com que ele vá absorvendo valores urbanos que se manifestam inicialmente na maneira de se comportar, no modo bizarro de se vestir imitando os jovens da cidade, etc. Nas praias como Picinguaba, no "claro" pode-se observar os jovens embarcados trajando camisas estampadas, calças justas e usando cabelo comprido, fenômeno que não se encontra nos artesanais das praias geograficamente mais isoladas.
Um outro sistema de vinculação com as atividades agrícolas é o uso ou não do forno de fazer farinha de mandioca. Enquanto que 29,5% dos artesanais afirmavam ter o forno, somente 15.5% dos industriais o possuíam. Dentro das sub-categorias a diferenciação é até mais significativa, pois entre os artesanais "donos dos aparelhos de pesca" a porcentagem se elevava a 37.1% enquanto que para os camaradas, não passava de 12.5%. Evidentemente a subcategoria dos mestres de barco é a que mais se identifica com a pesca: nenhum deles exerce outra atividade paralela e não tem forno de farinha.
Em termos de praias é interessante se observar, que a atividade agrícola exercida conjuntamente com a pesca pelos artesanais é mais presente em praias como Ubatumirim, Camburi, ao norte do município. Aliás é Ubatumirim que possui o maior número de agricultores nessa parte norte do município e eles são fornecedores de farinha de mandioca para Picinguaba, núcleo agora mais especializado na pesca da sardinha. Já nas praias mais próximas à cidade as atividades complementares não são agrícolas e sim do ramo de serviços (construções civis, biscates, etc.) como é o caso do Lázaro, Enseada e Maranduba.
Quanto a algumas características gerais da população de pescadores é desnecessário se afirmar que vivendo em sua grande maioria em situação de extrema marginalização, pois seus rendimentos em geral só lhes permitem a sobrevivência, os pescadores apresentam baixos índices de alfabetização".
quarta-feira, 22 de março de 2017
terça-feira, 21 de março de 2017
A ineficiente regulação do Estado e a questão do "Respeito".
O trecho que reproduzo a seguir é o item 5 da dissertação de mestrado que concluí no ano de 2016. Trazendo para o debate os vários pontos que precisam ser discutidos de forma honesta e realista para viabilizar a gestão eficaz e com justiça social do território costeiro do litoral norte de São Paulo.
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A complexidade do universo abordado por esta dissertação e a
limitada formação deste pesquisador não permitiram que nossa investigação
esgotasse o tema, mesmo em se tratando dos aspectos relativos à atuação de
poucos pescadores sobre um território próprio tão específico.
Uma característica interessante do território pesquisado é que
ele representa um microcosmo reunindo todas as características especiais
necessárias para o desenvolvimento de pesquisas científicas, sobre as
principais atividades causadoras dos impactos ambientais mais expressivos que
hoje ocorrem em todo o litoral norte de São Paulo e os potenciais conflitos socioecológicos
advindos destas atividades. Por exemplo, existem ao redor da Enseada do
Flamengo:
1- um emissário submarino, operado irregularmente pela
SABESP há mais de 30 anos, despejando esgoto e cloro diuturnamente a apenas 70
metros da areia da praia;
2- uma das maiores concentrações de leitos para aluguel de
temporada de Ubatuba, quiosques e restaurantes, com baixíssimo índice de coleta
e tratamento de esgoto;
3- o maior polo náutico da região com dezenas de marinas e garagens
náuticas, causando o tráfego intenso de centenas de embarcações dentro de “UCs”
federais e estaduais;
4- ainda, uma última península verde, o Morro da Ponta do Espia, local de antigas roças comunitárias e
casinhas caiçaras; muitos pesqueiros tradicionais, ruínas, pomares ancestrais,
fontes, olhos d’água, riachos e “praias virgens”. Este morro constitui zona de
amortecimento por fazer “divisa” com o Parque Estadual da Ilha Anchieta e com a
Estação Ecológica Tupinambás, no entanto, está hoje prestes a se tornar mais um
resort de luxo, condomínio fechado
para deleite do lobby especulativo imobiliário local;
5- uma “área preferencial” aquícola com várias fazendas
marinhas familiares de baixo impacto (2 mil m², sem a utilização de
arraçoamento), que contribuem para atrair, abrigar e fomentar a reprodução e
dispersão (spill out) de uma grande
variedade de organismos marinhos que nestes cultivos ocorrem naturalmente;
6- uma base de operações do Instituto Oceanográfico da USP,
um centro de excelência em pesquisa marinha;
7- e desde 2004, uma associação de pescadores e maricultores
locais, a Associação Pescadores da Enseada (APE), que costuma fazer a ponte de
ligação entre pesquisadores e a comunidade tradicional local, facilitando muito
o contato inicial para a troca de informações e desenvolvimento de pesquisas de
campo.
Isto posto, concluímos
que a gradativa perda dos valores tradicionais que garantem através do “segredo”
o acesso restrito e controlado aos pesqueiros
e seus recursos, somada à ingerência ou à incapacidade técnica e operacional
dos órgãos governamentais responsáveis pela gestão e regulação destes recursos
naturais, pode levar ao que Hardin chamou de A tragédia dos comuns. Desse modo, quando o espaço-recurso que é de todos, passa a ser de ninguém, pela
ausência de mecanismos externos oficiais ou tradicionais de regulação, desde
que ambos fundamentados no “respeito”, passa a imperar o estado de anomia, do
“se eu não matar, outro vem e mata”[1],
processo que acelera a degradação do recurso pesqueiro e a falência dos valores
comunitários locais.
Portanto, havendo
comprovação sob a ótica do direito consuetudinário de prática tradicional
reiterada e constante dentro desses territórios pesqueiros estudados, automaticamente
estará identificado o PHT que atesta ser esta, e não outra comunidade caiçara, a
ancestral possuidora do “direito real de uso” e gestão desses espaços
geográficos específicos, imprescindíveis para a reprodução material, simbólica
e sociocultural do próprio grupo de pescadores locais.
Observando
os temas relacionados nesse estudo e nos debruçando sobre a análise dos autores
consultados e dos dados de campo obtidos, percebemos a importância que a noção
do “respeito” ocupa dentro do sistema
sociocultural das comunidades tradicionais de pescadores artesanais costeiros.
Podemos notar que a principal regra tácita do “respeito” adotada na região
estudada é a de “chegar primeiro”.
Também
outra condição essencial para que um pescador alcance o “respeito” recíproco atingindo
a posição de “mestre” dentro da
hierarquia social e simbólica da comunidade é o grau de conhecimento, ou o saber-fazer próprio acumulado acerca dos
territórios pesqueiros; das artes de pesca; do habitat das espécies recorrentes;
das épocas de safra; da previsão meteorológica do Tempo; de sua capacidade pessoal física e artística, além da
facilidade didática em retransmitir esses conhecimentos tradicionais para os
aprendizes. Esse corpo de saberes, repositório de habilidades especiais ou “mestrança”,
podem ser examinados, avaliados e aprovados socialmente pela prática da faina
pesqueira diária e pelo sucesso das pescarias.
Como
visto anteriormente, os mestres por
sua autoridade coletivamente reconhecida são os naturais detentores do PHT que comporta todo o regramento cultural
responsável pela construção, interpretação, gestão, manejo e uso dos
territórios pesqueiros da própria comunidade local.
Desse
modo obtemos pistas que indicam o porquê das instituições governamentais falharem
em alcançar o “respeito” e a confiança dessas comunidades.
O
motivo básico fundamental da desconfiança e da não ratificação do sistema
formal de gestão ambiental-pesqueira
por parte dos pescadores tradicionais locais é que este sistema desrespeita
diretamente as duas regras chave que estão arraigadas basilarmente no código
informal do respeito (o dos
pescadores), atropelando o PHT local
que regulamenta o usufruto dos seus territórios pesqueiros.
Portanto:
1-
As instituições governamentais formais falham, por não considerar a regra do chegar primeiro, pois a comunidade
tradicional está ligada àquele território por séculos e o “meio ambiente”[2]
com seu regramento alienígena surgiu apenas recentemente;
2-
Os legisladores falham, por instituir um processo arbitrário de tomada de
decisões, construído e politicamente barganhado em gabinetes, que não respeita
a autoridade comunitária da mestrança e
o grau de conhecimento que os mestres
detêm sobre o uso do ambiente natural local e as especificidades próprias de
cada território pesqueiro. Valorizando critérios ecológicos e
político-econômicos da sociedade urbano-industrial
e desvalorizando o PHT local.
Assim,
a esfera governamental, através de seus analistas ambientais tecnocratas tenta,
em vão, reduzir a diversidade fluída e volúvel do mar e seus recursos inconstantes
a um regramento denominador comum universal. Os instrumentos normativos, tais
como: leis, decretos, resoluções e portarias não dão conta de policiar todo o
espectro de variáveis relacionadas ao uso do ambiente marinho. Essa é uma
habilidade somente reservada aos mestres
pescadores que estão ligados material e simbolicamente a um território
pesqueiro local, particular e específico, transmitido socioculturalmente de
geração em geração.
Existe um abismo entre
visões de mundo diversas, na busca de um novo horizonte político-científico que
dê conta da complexidade das urgentes questões socioambientais planetárias que
se colocam para a humanidade.
Até agora, apesar
dos inúmeros sinais de catástrofes socioambientais iminentes, a única certeza político-científica
validada é a da incerteza ampla e generalizada sobre qual rumo devemos tomar. O
paradigma científico mainstream atual,
ainda incapaz de apontar um novo rumo claro e certo que liberte a própria ciência
do círculo vicioso epistêmico positivista em que ela mesma se colocou, precisa
considerar a validade de outras formas de saber que também se comprovam
eficazes. Incorporando assim outras formas de também produzir ciência de modo
empírico, e sofisticado, não pela teoria, mas por sua prática histórica
permanente e ancestralmente continuada através dos tempos.
Desse
modo, o saber-fazer constituinte do
PHT pode contribuir ao menos para orientar em qual direção e sentido deva o conhecimento
político-científico “normal” caminhar para superar a atual crise de não
resposta acerca das interações homem-natureza.
Seria
esta a implementação de um novo ethos
político-científico capaz de ampliar o alcance da gestão governamental:
integrando diferentes modos de percepção do mundo ao nosso redor ao respeitar a
autonomia dos pescadores locais na aplicação do patrimônio cultural pesqueiro
dessas comunidades, ao seu próprio território marítimo de origem, em
consonância com os objetivos de conservação socioambiental do Parque Estadual
da Ilha Anchieta[3],
da APA Marinha do LN, do SNUC e da Resolução 169 da OIT.
Nosso trabalho
demonstra a dificuldade extrema dos órgãos oficiais responsáveis pela
fiscalização e gestão dos recursos pesqueiros em: conhecer, reconhecer e
legislar sobre a diversidade de artes de pesca, técnicas e petrechos
desenvolvidos e adaptados localmente de acordo com as peculiaridades de cada
espécie alvo e cada ambiente marinho. Também se mostrando incapazes em
enxergarem o “mundo” através da cultura local dos pescadores artesanais
caiçaras.
O que prevalece no
universo da “política de Estado” para o “meio-ambiente”, são sempre os interesses
do capital econômico especulativo dissimulado e/ou disfarçado com a utilização
de técnicas de “marketing verde” (greenwashing),
usurpando conceitos científicos “ambientalistas” em causa própria. A finalidade
dessa estratégia é obter o apoio da “opinião pública” para seus “empreendimentos
turísticos”, condomínios e marinas “sustentáveis”[4]
que gerariam “oportunidades de emprego e renda” aos pescadores e suas famílias.
Estes, assim, poderiam “parar de devastar os peixes” abrindo mão de seus
territórios pesqueiros para o “mergulho contemplativo” ou para a indústria da
piscicultura. É esse o discurso retórico
“sustentável” especulativo padrão, que hoje domina os “fóruns” do litoral norte
paulista.
Não obstante essa associação
entre Estado e capital econômico, o processo de construção de políticas
públicas através de normas de comando e controle, que é fruto do embate das
ideias tentando apreender ou moldar a dimensão física material, de acordo com
interesses político-econômicos, é, em sua essência, antagônico ao processo de
construção do regramento tácito das populações tradicionais.
Na estruturação do
trabalho e do manejo nos pesqueiros, é
a natureza material dos espaços, com seus ritmos, ciclos, surpresas e geografia
peculiares, quem molda as “leis do respeito”, dentro de uma tradição cultural
local resiliente, o PHT.Desse modo, o saber-fazer
tradicional está em consonância com o plano material bio-geofísico em que se insere, num processo análogo ao científico
de constante avaliação, corroboração, adaptação e revalidação do conhecimento
pesqueiro local.
Portanto, qualquer
tentativa de gestão sobre essas culturas-territórios-ambientes
que não “respeite” as dimensões materiais e simbólicas da população local, seus
saberes, técnicas e tipologias de pesca, reconhecendo a sua capacidade de gerência
eficaz do ambiente natural em que estão propriamente inseridas, contribui para
a construção de uma política pública natimorta. Impossível de ser posta em
prática, ou absorvida pelo PHT, devido a sua original ininteligibilidade ao
“espírito caiçara”. Trata-se da institucionalização oficial do epistemicídio.
Assim, o máximo de
concretude que estas regras alienígenas alcançam é a de uma simples folha de
papel amarelada pelo tempo, esquecida em um fundo de gaveta qualquer.
Ou, se for mais
nobre seu destino, uma página do “Diário Oficial” que embrulha a garoupa de linha vendida por um pescador
caiçara do lugá, no banco da sua canoa.
A cultura caiçara
resiste.
Foto: Peter Santos Németh, Praia da Enseada, setembro de 2006 |
[1]
Comunicação pessoal do mestre Antenor
dos Santos, Praia da Enseada, 2004.
[2]
Denominação genérica, comum entre os caiçaras, de tudo que envolve questões ou
instituições governamentais de regulamento e gestão das áreas naturais.
[3]
Principalmente do Plano de Manejo do PEIA de 1989 e das oficinas do Conselho
Gestor do PEIA de 2008.
[4]
Seria este o caso de: proporcionar para a geração atual a oportunidade de
desfrutar residências de alto padrão dentro de resorts de luxo envoltos pela mata atlântica e com direito a
garagens náuticas, sem comprometer a capacidade dos futuros herdeiros de também
possuírem suas mansões na floresta e ancoradouros para seus iates?
sábado, 4 de março de 2017
A PESCA DE TRÓIA EM UBATUBA-SÃO PAULO
SUBSÍDIOS PARA O PLANO DE GESTÃO PARA O USO SUSTENTÁVEL DA TAINHA, NO BRASIL.
Autores:
Peter Santos Németh e Antonio Carlos Sant'Ana Diegues
Resumo:
O presente estudo etnográfico procura caracterizar a arte de pesca denominada pesca de tróia e os petrechos utilizados nesse tipo de técnica pesqueira tradicional, em Ubatuba. A pesca de tainhas e paratis (Família Mugilidae) é de grande valor socioeconômico e seus primeiros registros no litoral sudeste brasileiro datam de meados do século XVI. Ainda hoje, a pesca de tróia é praticada em diversas comunidades locais do litoral norte de São Paulo. Culturalmente, essa técnica de pesca é de extrema importância para a transmissão dos saberes tradicionais relacionados às artes de pesca praticadas em canoas à remo e uma das principais responsáveis pela manutenção do patrimônio cultural pesqueiro caiçara.
TEXTO COMPLETO
Este artigo derivou da dissertação de mestrado entitulada:
A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local
Autores:
Peter Santos Németh e Antonio Carlos Sant'Ana Diegues
Resumo:
O presente estudo etnográfico procura caracterizar a arte de pesca denominada pesca de tróia e os petrechos utilizados nesse tipo de técnica pesqueira tradicional, em Ubatuba. A pesca de tainhas e paratis (Família Mugilidae) é de grande valor socioeconômico e seus primeiros registros no litoral sudeste brasileiro datam de meados do século XVI. Ainda hoje, a pesca de tróia é praticada em diversas comunidades locais do litoral norte de São Paulo. Culturalmente, essa técnica de pesca é de extrema importância para a transmissão dos saberes tradicionais relacionados às artes de pesca praticadas em canoas à remo e uma das principais responsáveis pela manutenção do patrimônio cultural pesqueiro caiçara.
TEXTO COMPLETO
Este artigo derivou da dissertação de mestrado entitulada:
A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local
Praia da Enseada final dos anos 1940. Foto: Paulo Florençano |
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