"Quero ainda poder navegar, morar num ranchinho à beira da praia, rolar em rolo e beijar o mar. Quero pescar, balançar nas marolas, carregar pescador, sentir o vento na proa, quilhar na popa em rumo a parcéis. Quero ser livre, seguir o clarão do sol e voltar no rastro da lua. Quero ouvir o canto dos goetes, quero o encanto das sereias, a benção de Iemanjá..."
Esse guapuruvu do Julinho quer ter esse privilégio antes de morrer de vez, secar e apodrecer no mato.
Sim, este é o destino mais glorioso que uma árvore pode ter, a de renascer como Canoa Caiçara, ter um dono cuidadoso e orgulhoso, um ranchinho na beira da praia para descansar depois da pesca, ter um nome muitas vezes igual ao da filha ou esposa, família que a Canoa ajuda a sustentar com dignidade.
Pois bem, esse é o lindo sonho de uma árvore que ainda não virou Canoa.
Mas dias desses fui alertado sobre várias imensas Canoas Boneteiras, mais de 10, que representam 1/3 do patrimônio naval da Praia do Bonete em Ilhabela que foram compradas por um dono de hotel para "enfeitar" a praia.
Foto: http://tainhanarede.blogspot.com.br/2015/04/caa-icara.html |
Hoje, estão agonizando na areia, imóveis, paralisadas, "pássaros na gaiola" como disse um amigo meu.
Que maior pesadelo pode existir para quem antes viveu aventuras diárias no mar, desvendou segredos das profundezas marinhas, dividiu alegrias com seu dono.
Que destino infeliz, salvar-se de apodrecer no mato para apodrecer na praia... logo alí, a poucos metros do oceano, das aventuras, do gosto salgado, do balanço cadenciado das ondas, do afago do seu dono, do cheiro abençoado dos peixes.
Que desgraça!
Ah... podem dizer... mas elas foram vendidas!
Sim, foram vendidas, ou melhor compradas. Compradas por um empreendedor capitalista que fez uma oferta para uma família que talvez tenha sido acuada ano após ano pelo próprio sistema capitalista, que extermina qualquer tipo de cultura comunitária baseada na reciprocidade igualitária, como é a Cultura Caiçara. Desta forma, cada vez mais e mais impactadas pelo consumismo proporcionado pelo capital que corrompe costumes, altera tradições e "pasteuriza" culturas, essas famílias se desfizeram de suas Canoas.
Podem ter pensado no "fracasso" da pesca artesanal, que já não proporciona o "de comer", na dificuldade de conseguir uma autorização "do meio ambiente" para fazer sua roça de mandioca.
- Pra que uma Canoa se eu nem consigo mais ser "Caiçara"!
Se pensarmos em toda a dificuldade e em todo o "custo" ambiental, humano, artístico, social, cultural envolvido na construção e uso de uma Canoa Caiçara, jamais aceitaríamos que uma Canoa pudesse servir como "enfeite". Isso é o verdadeiro crime ambiental! Isso sim deveria ser motivo de indignação e repúdio!
Volta pra água! Volta pra água! Volta pra água!